"Somos livres, mais democráticos do que 1974? Certamente que sim. Sê-lo-emos, e em que campos, mais do que o depois da entrada na Europa e a na União Monetária? Conhecendo melhor a nossa sociedade, os nossos direitos e obrigações políticas, poderemos afirmar que o povo português interiorizou na sua prática política aquelas regras mínimas que definem a democracia (regras de liberdade, de igualdade, de justiça)? Resposta é, mais uma vez, “sim”. Porem, qualquer coisa nos deixa irremediavelmente insatisfeitos. “Sim, sim”, mas… é como se o ganho em democracia ou em conhecimento da democracia que alcançamos sofresse de uma falha essencial. (...)
Gostaria de insistir num ponto: o legado do medo que nos deixou a ditadura não abrange apenas o plano político. Aliás, a diferença com o passado é que o medo continua nos corpos e nos espíritos, mas já não se sente. (…)
Por exemplo, o direito à cultura e ao conhecimento ainda não chegou ao sentimento da população portuguesa. (...)
Numa palavra. O Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede a crítica. (...)
Portugal conhece uma democracia com baixo grau de cidadania e liberdade. (...) Dito de outro modo: estamos longe de expressar, de explorar e portanto de conhecer e de reivindicar os nossos direitos cívicos e sociais de cidadania, ou seja, a nossa liberdade de opinião, o direito à justiça, as múltiplas liberdades e direitos individuais no campo social. (...)
Digamos que o velho Portugal rural e pré-industrial fechado sobre o seu império colonial pertencia a categoria das sociedades disciplinares com as suas instituições correspondentes (escola, prisão, fábrica, exército, Estado autoritário, etc.) A entrada de Portugal na Europa leva-o na direcção das sociedades de controlo.
Como consequência desta tensão, os hábitos de obediência e submissão que os portugueses trouxeram do autoritarismo salazarista mal começaram a desintegrar-se foram logo apanhados pelas tecnologias de controlo que surgiram. (...) É, aliás, o que os discursos político, económicos, social, cultural das instituições e dos media não cessam de nos dizer. Não há outra vias (politicas, económicas, sociais), não há outra maneira de viver, de educar, de instruir, de tratar, de organizar o lazer, de viajar, de se divertir, de amar. A abertura à Europa e ao mundo oferece-nos nesta sociedade normalizada a tecnociência ao serviço da globalização. "
José Gil, Portugal, Hoje. O medo de existir, Relógio d’Água, Lisboa, 2004
José Gil, Portugal, Hoje. O medo de existir, Relógio d’Água, Lisboa, 2004
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